O DESMAME DO SERTANEJO

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O DESMAME DO SERTANEJO

Já tinha completado 18 anos e concluído a quarta série ginasial (equivale hoje ao nono ano do ensino fundamental). Onde morava, Dianópolis, Estado de Goiás (hoje é Tocantins), não tinha ensino médio. No ensino médio você poderia optar pelo magistério (Escola Normal), o clássico (para humanas) e o científico (para engenharias e saúde). Não tive opção, não era só eu que não tinha opção, todos os meus colegas e gerações. Nasci ali, meu pai já tinha dado umas cambalhotas de mudanças para Goiânia, Anápolis, Gurupi e depois voltou às origens. Ele mudava de lugar na maior facilidade e levava família inteira. Por isso que terminei o curso ginasial com 18 anos. De novo em 1956 outra cambalhota para Brasília, na sua criação, ficamos lá, na Vila Planalto até l961, voltamos às origens. E ali, meio atrasadão, terminei o quarto ano ginasial.

Eu já era um retirante acostumado com as arribações. Mas, era assim, saía e sempre voltava para o mesmo lugar. Como se ali, em Dianópolis, estivesse sempre o ninho para nos acolher. Que parecia ser o nosso verdadeiro lugar de viver,  canto esquecido do Brasil, como se não existisse: meio Goiás, meio Maranhão, Meio Piauí e Meia Bahia (hoje a região é conhecida como MATOPIBA – fronteira de todos estes Estados). Por ali se encontrava vivo o ambiente do livro Grande Sertões Veredas de João Guimarães Rosa. A fala, a vida, as veredas, os buritizais, as árvores do cerrado, as casas de adobe, os costumes, a culinária de arroz com feijão, beiju, cuscuz, biscoito amor-perfeito, carne seca, estas coisas todas.  Os rios claros e as nascentes maravilhosas. A vida era pequena e ninguém entendia de socialismo e nem capitalismo, ali era a extrema pobreza que nós mesmos não a entendíamos. Era a igualdade por baixo. Era assim, porque tinha que ser assim. Nas campinas corriam livres emas, seriemas, tatus, veados e bandos de araras. E o sol doía. O capim provisória nutria o gado curraleiro e chifrudo.

Chegou o dia de ir embora. Não havia mais escola pra mim. Havia chegado um caminhão com mercadorias que voltaria para Goiânia. Dez  colegas subimos na carroceria e a igreja, a capela nos 9, a última casa foi sumindo. Veio um aperto no meu coração muito forte. Estava deixando para trás um pedaço de mim por  um sonho de ser médico. Não havia médico na cidade. E eu queria ser médico. Meu pai se dava por satisfeito como sargento da polícia. Eu chorei.

E fui chorando por horas a fio. Goiânia pra mim e Brasília para outros colegas. Bem à frente, no segundo dia de viagem, um tatu correu à frente do caminhão. Bati na boleia e ele parou. Saltei e corri para pegar o tatu-bola. Agarrei. Não era tatu. Era um gambá, que soltou em mim uma secreção, dizem que é urina, nunca vi coisa mais fedida. Ninguém me aguentou. Fui para os fundos da carroceria para pegar mais vento. Paramos em vários igarapés para banho. Esfregava de esfolar. E o fedor não saía. Pensei: só pode ser maldição. E fiquei preocupado com o gambá. Este gambá até hoje não sai do meu pensamento. Ainda bem, que o gambá não me atrapalhou em nada. Acho que até me ajudou, foi como um novo batismo, para o enfrentamento das dificuldades e da superação. Foi bom ter sido mijado pelo gambá.

E lá vai o caminhão pau-de-arara. Despedimos dos colegas em Brasília, outro choro, abraço demorado. Segui na estrada de chão para Goiânia, mais um dia de viagem. Por fim, meu irmão e eu desembarcamos na cidade dos nossos sonhos e esperanças. Fomos morar num quarto alugado, que naquela época se chamava “república” de estudantes. Aguarde o segundo capítulo.

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