A abolição da escravatura aconteceu há 132 anos, mas a luta continua

A abolição da escravatura aconteceu há 132 anos, mas a luta continua

CONFÚCIO MOURA (MDB/RO)
44ª Sessão Deliberativa (Remota) da 2ª Sessão Legislativa Ordinária da 56ª Legislatura
13/05/2020

Estamos completando 132 anos de abolição da escravidão em território brasileiro. No entanto, ainda NÃO FOMOS CAPAZES de completar a tarefa de emancipar parcela significativa de nossos cidadãos, aquilo que uma princesa fez no 13 de maio de 1888. De fato, a escravidão é fardo insuportavelmente pesado, que legou marcas e cicatrizes terríveis presentes no tecido social brasileiro ainda hoje, passados mais de 100 anos da libertação dos escravos.

Como já observara Joaquim Nabuco em O Abolicionismo, escrito em 1883, além da “tarefa imediata do abolicionismo (…) há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores”. Ainda não conseguimos concluir.

Parece que a escravidão, que remonta às próprias origens da colônia, primeiro com os índios e depois com os africanos, é uma marca permanente, que não se apaga da alma nacional. Digo índios porque eles foram os primeiros a sofrer sob o jugo dos colonizadores. Em pouco mais de 100 anos, parcelas significativas do centro-sul brasileiro foram palco de frenética atividade de captura de índios para o trabalho escravo.

Ao mesmo tempo em que isso acontecia, chegava em 1535 a primeira leva de escravos africanos para trabalhar nos engenhos de Pernambuco. O tráfico transoceânico que aí se inicia somente iria se encerrar mais de 300 anos depois.

Durante os mais de três séculos de escravidão legalizada, foram muitos os focos de resistência e rebelião. Houve muitos quilombos, sendo Palmares, destruído no final do século XVII, o mais conhecido. Além disso, houve revoltas como a dos Malês, em 1835, na Bahia, durante reprimida.

No Brasil, os primeiros projetos de abolição remontam a José Bonifácio, em 1823, mas com pouca repercussão entre as elites. O debate mais sério só se inicia na década de 1850, com o surgimento de algumas sociedades abolicionistas e com o aumento paulatino da pressão externa.

A Lei do Ventre Livre, aprovada pelo Parlamento em 1871, é o primeiro movimento legislativo que sinaliza claramente o fim da escravidão. Ressalte-se que foi de natureza muito tímida, haja vista que impunha diversos condicionantes ao recém-nascido e até possibilitava que o dono de escravo pudesse receber algum tipo de compensação financeira. Mesmo assim, foi um grande campo de batalha no Parlamento.

A discussão diminui por alguns anos para retornar com força total na década de 1880. Algumas províncias, caso de Ceará e Amazonas, são pioneiras na libertação de cativos.

A discussão é levada novamente ao Parlamento em duas ocasiões. A primeira, em 1884 e 1885, marca a discussão da Lei dos Sexagenários como mais um episódio para assegurar aquilo que seria uma transição suave para o fim da escravidão. A aprovação da lei não acalma as ruas, que continuam em ebulição cada vez mais explosiva. O resultado é que a abolição definitiva se torna questão dos debates parlamentares em 1888.

O impasse no Parlamento é resolvido pela Princesa Isabel com a Lei Áurea, que liberta, sem indenização – como pretendiam muitos proprietários – os escravos no Brasil.

Aqui, recorro-me novamente das palavras de Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo: “O Brasil foi levantado ou cultivado pela raça negra; ela construiu o nosso país” – mas, continua Nabuco, “a raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua”.

Isso é a mais absoluta verdade. E o que foi feito para redimir esses milhões de homens e mulheres? Pouco, vergonhosamente pouco.

Fomos o principal destino do comércio de escravos africanos – mais de 40% vieram para o Brasil – e o último país do hemisfério ocidental a acabar com a escravidão. O fardo da instituição é uma enorme e aberta cicatriz em nossa sociedade. A desigualdade social brasileira se expressa por meio de fronteiras raciais.

O ex-senador Cristovam Buarque, proferiu discurso no plenário do Senado Federal em 14/05/2007: “O que fizemos foi dizer que já não seria possível pôr alguém para trabalhar forçosamente. Nós passamos a permitir o desemprego. Nós autorizamos os escravos a saírem das senzalas para as favelas, para debaixo das pontes. Saíram das senzalas para o relento. Essa é a verdade. Nós dissemos que já não iam comer o que sobrasse da cozinha da casa-grande, e passamos a condená-los a uma fome que o escravo não passava. O escravo não passava fome porque era do interesse do seu proprietário alimentá-lo de maneira suficiente para que ele continuasse trabalhando com vigor e com saúde. E o mais grave ainda para o futuro: abolimos uma determinação que proibia o filho do escravo de ir à escola, mas não os colocamos nas escolas, não fizemos as escolas. Eles saíram da prisão em que viviam como filhos de escravos para perambularem nas ruas, para sofrerem o abandono e virarem meninos de rua, em vez de filhos de escravos”.

Recorro ao livro Escravidão, do jornalista Laurentino Gomes. Segundo ele, negros e pardos – classificação do IBGE que inclui mulatos e uma ampla gama de mestiços – representam 54% da população brasileira. Mas, em contrapartida, são 78% dos 10% mais pobres. Por outro lado, são apenas 17,8% do 1% mais ricos. Em 2016, a renda média mensal dos brancos era de R$ 2.814,00. A dos negros era de R$ 1.570,00.

Na educação, 22,2% da população branca tem mais de 12 ou mais anos de estudo. Para os negros, essa taxa é de 9,4%. Em 2016, 9,9% dos negros eram analfabetos, mais do que o dobro do índice encontrado entre os brancos.

Um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de homicídio no Brasil do que um homem branco. São também a absoluta maioria entre os habitantes de bairros sem infraestrutura básica, como luz, saneamento, segurança, saúde e educação.

Entre os 1.626 deputados distritais, estaduais, federais e senadores brasileiros eleitos em 2018, apenas 65 – menos de 4% do total – eram negros. Nas 500 maiores empresas que operam no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência são ocupados por negros.

É estarrecedor, ainda, que segundo a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), “os dados apresentados pelo Ministério da Saúde mostram que mais pessoas pardas e pretas morrem pelo coronavírus do que pessoas brancas. O número de pretos e pardos mortos é de 51,3%, ante 46,5% dos brancos. Mas as pessoas brancas são as que mais ingressaram nos hospitais pela COVID-19, com 54,8%, ante 43% de pretos e pardos hospitalizados”.

A médica Júlia Rocha, em seu blog no site UOL, resume bem a situação: “Ranço escravocrata, temos uma população negra empobrecida, exposta aos trabalhos mais insalubres, ao transporte público ruim, com níveis de escolaridade mais baixos, mais dependente do SUS sucateado, e que não terá dinheiro para pagar por assistência médica particular”. Ela sintetiza bem a situação ao citar o roteirista e diretor Rafael Dragaud: “A doença é democrática. O remédio, não”.

A grande obra da abolição continua inacabada. Libertar milhões e milhões de brasileiros dos grilhões da miséria, da ignorância, do analfabetismo é a tarefa mais importante que cabe a qualquer governo brasileiro. Só quando rompermos as correntes que prendem este povo é que seremos verdadeiramente uma nação.

Era o que tinha a dizer.

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