O meu quarto de hora

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O meu quarto de hora

A noite sobre mim tem um rito, pesado e triste, de me acordar sempre às duas horas da madrugada. Até me parece que tenho um compromisso sério a cumprir, algo inadiável, que a mão invisível, não perdoa, tal qual a mãe que acorda o filho para o trabalho distante.

Irrompe no silêncio, ora chuva, ora céu e lua claros que testemunhem todas as dúvidas que o dia não pode conhecer. Estou no meu quarto de hora, como era no meu tempo de quartel, a cobrir o companheiro e reiniciar sempre a mesma rotina, de dar voltas ocas, parar, olhar o absolutamente nada, e distante a cidade de Goiânia, envolta em casebres, ora cerrado, ora lâmpadas, e apenas um medo recolhido de um inimigo.

O nosso irmão brasileiro, encarnado de revolucionário, nunca visto, mas, possível, de um dia perigoso homem, inimigo do Estado, contra o ódio, que vinha das camadas ditas populares, o estado, movido a estes mais distantes e estranhos, pobres e que avançariam sobre as grandes cidades.

As grandes forças, a assaltarem quartéis, matarem soldados e levarem as armas, para a revolução que se movia subterrânea e que tanto medo e pavor metia nas altas esferas do governo. E o Brasil seria outro, justo e igualitário, onde ninguém teria patrões e o poder seria do povo e dos trabalhadores.

Por todos estes sonhos idealizados, por um mundo melhor, o nosso país já foi movido por colunas, discursos, conflitos, prisões. E o nosso inimigo temido, o nosso irmão brasileiro, que não conhecíamos a face, os gestos, os atos, era o nosso inimigo oculto, que me fazia acordar sempre às duas horas da manhã para o meu quarto de hora de trabalho. Mas, o esse meu quarto de hora de vigília e guarda, ele era a minha fantasia, meu anjo mau, impiedoso, que me acordava, agora, no alto dos meus anos vividos, onde não teria mais condições desta vigília.

Mesmo aqui estou na prontidão, para assistir o meu país sempre às turras com seus próprios sofrimentos existenciais, de nunca se encontrar em lugar nenhum, em tempo nenhum, em ideologia nenhuma, um país que ainda vive no seu dilema infantil, que querer ser e não sabe como é ser de verdade, e fica por aí, nas noites, a procurar caminhos, querendo entrar em todos as portas.

Parece perdido na noite, como os doidos, como se fosse para cumprir, sempre na mesma marca do relógio, o meu quarto de hora, a vigiar o mundo. Desperto abro a minha janela de alma, e os caminhos sempre se fecham para nós mesmos, que cada vez mais vamos experimentando modelos, como se cada modelo fosse a nossa pura e justa razão. E na outra noite faz-se a mesma volta de sempre, e nos surpreende porque o caminho era o outro caminho já percorrido e desprezado, agora, reencontrado e parece certo, sempre o mesmo e mais tenebroso e absurdo.

E no meu quarto de hora, de mais um dia, um novo Brasil que ainda não se encontrou de verdade e sempre rondando, como rodamoinho triste e vento frio, de uma pátria partida, sem rumo e qualquer rumo é rumo, mesmo que sempre se chegue a eterno recomeço. Eu estou cumprindo mais esse quarto de hora, como os de sempre, e vejo pasmo, que o inimigo que tanto procuramos, enfim, encontrados, e todos podem ser algemados e presos e condenados a prisão perpétua, este inimigo das minhas vigílias, sou eu mesmo, todos os vocês brasileiros, os poderes constituídos, que bailam nas noites como nuvens e fantasias e que sempre se odeiam e se encontram no mesmo lugar.

As nossas insônias são os pesos que nos apertam a um armistício de paz entre os tantos conflitos existenciais de um país que ainda não se encontrou. Estou velho e pego a mão desta criança que é a minha esperança.

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