Alice: histórias e surpresas

Alice: histórias e surpresas

Dia 6 de dezembro,  eu estava em Porto Velho. A Cida me ligou: – Confúcio, vem, está na hora. Eu indaguei: hora de quê? – A despedida da Alice. – Eu falei, Cida estou em Porto Velho, não sabia de nada. – Todo mundo tá  aqui, sem você, como fica? -Falei: faça a festa. Todo mundo chorou. Juntou gente de várias gerações.

Ontem, ela resolveu encerrar a atividade de consultório, depois de 42 anos seguidos de dedicação ao povo de Ariquemes. Chegou quando não havia cidade. Era tudo floresta. Tem menino nascido com ela que tem 40 anos.

Em 2005, no seu aniversário, escrevi uma crônica pra ela. Como presente: (o mundo encantado de Maria Alice), tirando alguns pontos da nossa história profissional, que vou resumir pra vocês:

“O seu mundo é diferente, pode-se dizer que não tem nada de Terra redonda. O dela é reto. Curto. Nem chega a duzentos metros entre ir vir. Mora tão perto do serviço”.

“É a sua vida. Andar pelos becos do casarão, a intimidade com os cães, atenção aos pacientes quando os sinos soam, viajar a cada ano para os congressos médicos. E no mais é o seu silêncio”.

“Nós médicos generalistas,  aprendemos  com os mais experientes. E foram tantos cirurgiões, ortopedistas que trabalharam conosco. Indo e vindo a congressos e cursos fora do Estado. Num bendito dia, final dos anos setenta, chegou o Neno (mecânico da cidade) querido e conhecido. Um tiraço de espingarda no tórax. Um rombo enorme. Tinha de tudo ali: hemotórax, pneumotórax, desgraçotórax. Ela me perguntou: – e aí Confúcio? – Deixa morrer ou vamos operar? ”

“Claro, vamos operar. Nunca havíamos operado um tórax. Só visto de longe na faculdade. Eu falei, pega o livro do Alípio Correia Neto e um atlas. Vamos dar uma lida. Lavado o paciente, raspado os pelos, começamos o ato. A princípio, a estratégia seria, lavar, limpar, por dreno e fechar. A coisa era feia, tinha bucha e chumbo por dentro. Bofe espatifado.  “Bolo” auxiliar de enfermagem improvisado, era acostumado com sangue. Eu disse: – vou fazer uma lobectomia. – Você é doido? Tirar um pulmão ou pedaço dele, por aí passam os grandes vasos que vão ao coração? Bem, o Neno foi operado e ainda viveu cinco dias. Ato heroico. Teve outro, na semana seguinte. Este vítima de uma facãozada no peito. Também, operado, viveu por muitos anos. Morreu de velho”.

“O hospital não era hospital. Um galpão de madeira. Beira da BR-364, ainda sem asfalto, da pista de pouso, poeira cobria tudo, frestas enormes entre as tábuas. Preenchidas com trapos, gaze e algodão. Uma cisterna. Uma gambiarra de luz. Galpão dividido ao meio: metade hospital, outra metade hospedaria.”

Como o passar dos anos Alice se tornou especialista em Ginecologia e Obstetrícia, também em Ultrassonografia, com esforço imenso, viagens para São Paulo, Goiânia e sempre presa, com maior intimidade com seus colegas de turma do ano de 1976. Nunca trabalhou no serviço público. Nunca teve salário fixo. Nunca fez concurso. Empreendedora e apegada ao risco. Aposentada pelo INSS, recebe cerca de 4 mil reais por mês.

A cidade de Ariquemes está dentro das nossas veias. E nós dentro das suas ruas. E a cidade hoje, transborda de médicos especialistas, extraordinários, fantásticos – mas, como Alice, Irani, Rafael, Alice e eu – só nós para contarmos estas histórias fantásticas  do Velho Oeste rondoniense.

Vamos passar o bastão desta olimpíada para as futuras gerações.